Novas notas sobre o Index
a memória como prática, ou acto
Verónica Metello (in Cacao Europa Nr. 1, Lisboa & Memória)
Os álbuns – que são álbuns de família, amigos, amantes, crianças, filhos, bichos, coisas e lugares, são projectos de fabricação de narrativa e memória, e existem desde final de 2006. Hoje, contamos 7 albums de transfers.
Um factor comum, o consenso ( consentire – sentido feito junto, em concordância – de coração a coração) que funciona como elemento aglutinador, ou do qual depende a aderência dos diferentes estratos uns aos outros, decorre de uma noção de verdade ou facto – e esta é paradoxalmente garantida pelo caracter indicial (index), documental da imagem. Como documento, a imagem fotográfica testemunha, fixa, faz a mediação e afere do consenso de uma ficção feita verdade partilhada, de uma narrativa.
Mapas de memórias, reiteradas em cada leitura, os álbuns testemunham e fazem um referente de mundo da vida, que tal como essas memórias, é artefacto e ficção. Produtos modelados afectivamente, no hábito e na memória pessoal e colectiva, que constitui a narrativa dos que nele se representam. A narrativa opera duplamente: sustém e sustém-se do mundo da vida, e compõe, co-compondo-se com um mundo da vida, o quotidiano-narrativa. O mundo da vida, “não é uma estrutura estática e acabada da experiencia, mas uma sedimentação complexa e intersubjectiva ou se fundem todas as significações logicas, cientificas, religiosas, estéticas, etc., que aí depositam os seus vestígios”[3]. Daí decorre a sua plasticidade[4]. À imagem do quotidiano vivido, o álbum-mapa é actualizado a cada leitura, adensando, a sedimentação que afere a consistência da sua narrativa. Um fazer de si: “no processo de usar – produzir, seleccionar, ordenar, mostrar – fotografias, a família está no processo de se fazer a si mesma”[5].
O “ver fotograficamente”, sobre o qual escreve Celia Lury[9] na sua leitura da construção subjectividade modernista por via dos dispositivos tecnológicos da produção de imagem, passou a ser constituinte. A imagem e o olhar que através deste se faz, pelo enquadramento, é tanto testemunho como produção. Produz, nisto, essa narrativa a ser inscrita, tecida, entretecida nas demais narrativas constituintes. Segundo Lury, o “ver fotograficamente” trata-se tanto de um modo específico de cognição como uma técnica de rememoração que afecta simultaneamente as “configurações subjectivas como a identidade colectiva, a experiencia e a informação”[10]. O aspecto central na definição “ver fotograficamente” é: a subjectividade contemporânea constitui-se como uma pós-vida do acto fotográfico, como um “subject-effect” de, a contra-memória da fotografia[11]. Ambas as funções – perceptiva e de constituição de memória, são definidas pelo paradoxo da fotografia na representação : é a imagem de um refente material no mundo, mas o seu caracter indicial, abre uma temporalidade particular, incapaz de desvinculação a esse referente material, do qual participa pela sua ausência.
O isto-foi de que fala Barthes na Câmara Clara[12] é a constatação do fundamento, ou o ventre de Adão. Sobre isso escreve Maria João Baltazar[13]: “esse instante de constatação, “isto foi”, será progressivamente reenquadrado quando regressar “ao que aconteceu”: o movimento de rememoração tão propicio ao médium fotográfico, corresponde a uma compreensão sempre renovada do passado, a voltar lá acrescentando as peças adquiridas agora, sedimentando novas possibilidades e permitindo com esse resgate uma promessa e sentidos futuros. Estabelece-se assim a possibilidade de um espaço de transição, compreendendo-se o significado e valor de cada fragmento deixado para trás, espécie de prolongamento do noema da fotografia, dilatando-se essa inevitabilidade Barthesiana até um momento posterior, onde a participação e edificação da memória tornam o objecto fotográfico como ponto de partida numa mediação presente relativamente “ao que aconteceu” e ainda resgatando o sentido e a possibilidade de vida num porvir esperançoso”.[14]
A sua característica é a estranheza própria da articulação experimental, produtiva, do mapa de uma particular trama de espaço-tempo, urdida como esse espaçamento trabalhado, cuja plasticidade encontrada é da imanência do próprio mundo da vida, do quotidiano e das suas narrativas constituintes. Construídos, compostos, no espaço-tempo da evidência feita da ausência, em cada leitura ou actualização: a memória como prática, ou acto.
BIBLIOGRAFIA.
Baltazar ,Maria João, Olhar Moderno – Fotografia enquanto objecto e memória, ESAD, 2010
Bégout ,Bruce, La découverte du quotidien, Allia, Paris, 2010
Benjamin , Walter, “ L’oeuvre d’art à l’ére de sa reproductibilité technique” in Oeuvres III, Paris, 2000
Bhartes , Roland, A Câmara Clara,, Edições 70, Lisboa.
Deleuze ,Gilles , Guattari , Félix, Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio e Alvim, Lisboa, 2007
Deleuze Gilles Diferença e Repetição, Relógio d’Agua, Lisboa, 2000
Didi-Huberman , Georges, La rassemblance par contact, Archéologie, Anachronisme et Modernité de l’empreinte, Paris, 2008
Didi-Huberman , Georges, O que nós vemos, o que nos olha, 2011
Formis ,Bárbara, Esthétique de la vie ordinaire, PUF, Paris, 2010
Kuhn, Annette, Family secrets, Acts of Memory and imagination, Verso, London, New York, 1995 (1ªed), 2002,
Lury , Celia, Prosthetic Culture, Photography, memory, identity, Routeledge, New York, 1998.
Pierce ,Charles Sanders, Collected Papers, vol. II
[1] Seguimos duas referências, distintas: 1. Celia Lury, Prosthetic Culture, Photography, memory, identity, Routeledge, New York, 1998. Neste livro, a autora mostra como a experiencia perceptiva, tal como a memória, são transformadas pelo “ver fotograficamente”, criando uma cultura de memória protésica da qual decorre uma particular construção de subjectividade, feita do e no pós-fotografico. 2. Annette Kuhn, Family secrets, Acts of Memory and imagination, Verso, London, New York, 1995 (1ªed), 2002, onde por via da fotografia de família a autora reconfigura a narrativa pessoal da sua família, e da sua própria definição, no que designa práticas de memória. Interessa-nos particularmente a relação que estabelece – porque flexível em constante redefinição entre a imagem e suas leituras possíveis, a memórias como modo de acesso a um passado cuja arqueologia implica uma mudança do presente e do futuro, e das estrutura sociais como ideias (p.2-4), convenções passiveis de serem continuamente alteradas por via deses actos de memória.
[2] Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, Relógio d’Agua, Lisboa, 2000, p. 357
[3]Bruce Bégout, La découverte du quotidien, Allia, Paris, 2010, p.110
[4] Trata-se da plasticidade que fala Bárbara Formis no seu Esthétique de la vie ordinaire, onde expõe como a arte contemporânea recorre a várias estratégias, por via do gesto: indiscernibilidade, estética do quotidiano vs estética dos gestos comuns, impresentação e menoridade, para revelar a qualidade estética do gesto enquanto comum tanto à arte como à vida, afirmando a convencionalidade ( sentido construído) de ambas, em seu arifício. p. 26 e 27.
[5] Annette Khun, Op. Cit, p. 19.
[6] Gilles Deleuze , Félix Guattari, Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio e Alvim, Lisboa, 2007, seguimos de perto a formulação destes conceitos no capitulo 3, pp. 65-106.
[7] Bruce Bégout, Op. cit. p. 172
[8] Id.ibid., p.286, 287
[9] Op. cit. nota 1.
[10]Celia Lury, Op. cit,p.148
[11]Id.ibid., p. 86
[12] Roland Bhartes, A Câmara Clara,, Edições 70, Lisboa.
[13] Maria João Baltazar, Olhar Moderno – Fotografia enquanto objecto e memória, ESAD, 2010
[14] Maria João Baltazar, Op.cit, p.127
[15] Charles Sanders Pierce, Collected Papers, vol. II, p. 160.
[16] Georges Didi-Huberman, La rassemblance par contact, Archéologie, Anachronisme et Modernité de l’empreinte, Paris, 2008, p. 55
[17] Id.ibid., p. 28
[18] Id.ibid., p . 42
[19] Walter Benjamin, “ L’oeuvre d’art à l’ére de sa reproductibilité technique” in Oeuvres III, Paris, 2000, p. 75
[20] Georges Didi-Huberman, O que nós vemos, o que nos olha, 2011, p. 117
[21] Didi-Huberman contra-argumenta no La rassemblance par contact, Archéologie, Anachronisme et Modernité de l’empreinte, Paris, 2008, p.80, relativamente a essa distancia. Contra essa oposição conceptual propõe pensar a impressão: as reliquias cristãs, rostos impressos, sudário, Verónica, no modo como colocam a questão da auratização do incide, do vestígio ( vestigium) , da face ( facis) e da graça ( gratia) como enunciados no vocabulário medieval. Nestas, e esta torna-se a base do seu argumento, tudo se trata de uma única aparição de uma lonjura, por mais próximo que essa aparição possa ser: essa característica da aura verifica-se plenamente, em todos os níveis, narrativamente, liturgicamente, iconograficamente – na existência das santas faces cristãs.