Cenas da vida privada

A fotografia e os códigos da teatralidade

Enquanto decorre na galeria Mk, em Roterdão, uma exposição individual sua, Duarte Amaral Netto (n.1976) apresenta em Lisboa, na Módulo, a exposição “Entre dois Mundos”, composta por oito imagens a cores de vários formatos. As fotografias não se reportam a a acontecimentos aparentemente significativos, não documentam nem declaram qualquer conteúdo digno de nota. A falta de um sentido evidente é o seu mais evidente sentido comum.

Uma mudez inquieta percorre as fotografias por igual, independentemente do contexto estrategicamente escolhido pelo fotógrafo. Um olhar mais atento verificará depois que se trata, em cada uma delas, de uma encenação. Da banalidade burguesa dos cenários à atitude das personagens, passando pela utilização orientada da luz, tudo é calculado para que assuma uma determinada disposição.

E, no entanto, esse território de hesitação que cada imagem constitui é o rastilho de um drama psicológico que se insinua sem chegar nunca a revelar-se. Na primeira imagem vemos um homem absorto, sentado numa cozinha, que esconde a cabeça com o braço. Nas duas seguintes, um rapaz e uma rapariga são, respectivamente, envolvidos por um cenário de vegetação, tradicionalmente identificado como propício à contemplação. Várias outras fotografias de maiores dimensões e em formato panorâmico mostram casais em quartos de hotel ou ambientes domésticos. O formato panorâmico que extrema as personagens na imagem indicia um afastamento e cria polarizações várias entre feminino e masculino que se prolongam no título da exposição. Por outro lado, títulos como “Ontem à noite” ou “A Festa” reportam-nos a dados ficcionais que não vemos mas que re-orientam a nossa relação com aquilo que vemos.

Um silêncio difuso percorre todas estas imagens, dizíamos. Mas não se trata de um silêncio sem origem nem prolongamento. Tudo o que elas indiciam se passa for a delas. Na imobilidade de cada cena, são calculados retratos de impasse. Situam-se, propositadamente, num momento de suspensão criado pelo dispositivo fotográfico que instaura nelas a sua teatralidade. Mas que teatro é este, qual a sua natureza? E qual a filiação da sua dramaturgia? Subjacente aos gestos, ao fechamento dos rostos, à disposição dos espaços que parecem contaminar os humores das personagens, descobrimos uma teatralidade psicológica, relacional e afectiva. Essa teatralidade vem, historicamente, de muito longe, transporta códigos de representação da pintura antiga e de algum realismo moderno, capazes de exprimir uma densidade psicológica. Vem materializar o seu lento artifício no acto instantâneo da fotografia, interrogar a sua relação com uma qualquer verdade. Na sua relação com o tempo, toda a imagem supõe uma cadeia de enredos que a antecipam e outra que a prolonga para além do momento da sua fixação. Desfiar esse novelo é, no caso da fotografia de Duarte Amaral Netto, o nosso difícil papel.

 

Celso Martins
in Actual, Março de 2005

 

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