Novos anos cinzentos

Novos anos cinzentos

 

NOVOS ANOS CINZENTOS

(Quis saber quem somos)[1]

 

Por João Seguro

 

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Em 2014, durante o período de crise económica e social que se viveu em Portugal desde 2010, e que repercutiu a crise financeira global de 2008 aprofundada[2] por um pedido de resgate financeiro do Estado Português à troika/F.M.I. durante o governo de José Sócrates, Duarte Amaral Netto iniciou uma viagem de trabalho de campo que viria a ser, em simultâneo, uma investigação fotográfica onde documentaria vários aspetos do território português.

Decidiu fazer esta viagem quando, no rescaldo das enormes turbulências que se faziam sentir no país, um amigo lhe sugeriu emigrar como forma de continuar com ânimo e perspetivas aquilo que parecia estar vedado às gerações mais jovens do país. Na iminência dessa possibilidade, Duarte avança antes para uma desassombrada expedição fotográfica na qual procura saber que país é afinal esse que o seduziram a abandonar e cujo desconhecimento o inquieta. Poderemos nós abandonar uma coisa que não conhecemos?[3]

O trabalho de campo consistiu numa constante gestão das impressões e dos modelos de aproximação ao objeto de observação. Verdade, documentação, ficção, memória, narrativa, encenação, geografia, tableau, incerteza, teatralidade, oportunidade, momento, deceção – são vocábulos que têm servido, em medidas desiguais, para descrever as características essenciais da prática fotográfica de Duarte Amaral Netto ao longo dos últimos vinte anos.

Ao olhar fotográfico paradoxalmente idealista e realista a que a obra de Duarte Amaral Netto normalmente respondia, somava-se agora a observação etnográfica, a análise sociológica, o rapport psicológico e o humanismo existencialista com que tantos (se) questionaram no último século. Ocorre-nos a viagem que José Saramago fez entre 1979 e 1980[4] na qual percorreu o país de norte a sul, anotando relatos das figuras, dos lugares, das culturas e das idiossincrasias de um território acabado de sair de uma ditadura; ou a que havia feito Miguel Torga[5] décadas antes, ainda num registo glorificador do passado e dando margem a uma visão mitificada da nação; ou tantas outras  em manifestações teóricas ou artísticas que tentam acomodar uma visão do mundo ao conhecimento pragmático do espaço e do território.

Esta viagem, que se iniciaria a Norte da cidade de Chaves, perto da fronteira Norte de Portugal, e terminaria no extremo Sul do país, seria um périplo automóvel em linha reta, no qual por um período de uma semana, o autor tomaria o pulso a um país que embora territorialmente pequeno, se revelava demasiado diverso, heterogéneo e irrepresentável.

Esta expedição foi desencadeada por um grave sentido de incompletude, que o desconhecimento do país real provocava a Duarte Amaral Netto e que se agravava a cada dia na sequência dos acontecimentos da atual conjuntura socioeconómica e política.

 

Àquela data estávamos a começar a sair de um momento que, o na altura Primeiro Ministro Pedro Passos Coelho qualifica como sendo «um dos mais difíceis da história do país desde a ditadura».[6] Mas apesar de todas as adversidades vividas durante esses anos por força do plano de resgate, parecia começar a existir alguma esperança, pois em 2013 o mesmo Pedro Passos Coelho anuncia que «(…) ao longo de 2013 se espera uma inversão dessa tendência recessiva»[7].

Duarte Amaral Netto, incrédulo com as abordagens políticas que vaticinam o futuro do país encara a sua viagem como uma forma de confronto com as realidades que as notícias e as estatísticas não representam. Durante esse período pesado da história nacional recente questiona o país e a sua representação, a partir da coleção, leitura e análise de jornais e outros periódicos, que lhe permitem ir montando uma enorme manta de retalhos (social, económica e cultural) que essa polifónica entidade nacional parecia ser, para a partir daí tentar construir uma imagem desse país que corresponde, não estranhamente, a um território que está ainda preso a um passado que o impede de imaginar um futuro.

Neste sentido, a célebre ideia de Gramsci, de que «a crise consiste precisamente no facto de o velho estar moribundo e o novo não conseguir nascer; neste interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece»[8], parece servir de alfaiate para qualificar o país de 2014. Estávamos, nesses novos «anos cinzentos», condenados a reviver a memória da pobreza económica, das clivagens sociais, do aumento galopante do desemprego, e, perante um clima geral de desconfiança nos modelos capitalistas impostos pelo «projeto europeu», no rescaldo que o desnivelamento do poder de compra pela adoção da moeda única e que as contrapartidas geopolíticas e comerciais penalizantes tinham infligido ao país. O país encontrava-se assim num período de contração ainda muito diferente do que tinha sido antecipado por Passos Coelho em 2012.

 

Esta viagem seria feita em linha reta e as paragens seriam calculadas à sorte, de acordo com a chave de um talão de Euromilhões da semana em que iniciou a viagem, a 14 de julho de 2014, conferindo uma arbitrariedade propícia à liberdade prática e ideológica que um projeto desta natureza acarreta.

 

 

MUNDOS DE FRONTEIRA – IMPRECISÕES POÉTICAS E IMAGENS GEOPOLÍTICAS

 

A história fornece-nos pistas para aquilo que vamos ver.

Duarte Amaral Netto inicia o seu itinerário no Norte de Portugal, mais precisamente acima da cidade de Chaves, perto da fronteira com Espanha. A fronteira é hoje uma ideia remota e da sua existência física só existem escassos vestígios. A fronteira que separa o território nacional do país vizinho e do restante continente europeu é agora apenas administrativa e burocrática. A inexistência de fronteiras foi a grande prerrogativa da criação da União Europeia e a livre circulação de pessoas, bens e mercadorias, bem como a implementação de uma moeda única, pareciam ter vindo criar condições para a uniformização dos modos de vida. O que viria com isso? Seria possível continuar a conceber a identificação visual do país como uma entidade permanente e estável, quando as circunstâncias históricas dos últimos setenta anos nos falam acima de tudo de uma enorme disformidade que põe em causa qualquer hipótese de estabilidade de uma identidade nacional? E de que identidade nacional se pode falar hoje quando sabemos que os modelos de representação são sempre desadequados, incompletos e raras vezes capazes de ser inclusivos?

Este parecia ser o verdadeiro ponto de partida de Amaral Netto – observar e fotografar um país que não tem uma imagem concreta de si, estilhaçado pela multiplicidade de ofensivas à sua uniformidade sociocultural e económica, com várias feridas abertas pelas drásticas mudanças políticas que o tecido humano e territorial vem sofrendo pelo menos desde a 2aguerra mundial, passando pela ditadura, a revolução de 1974 ou a consequente tentativa de acertar o relógio pelos ponteiros da Europa aquando da adesão à União Europeia. A imagem era a de um país que viveu de crise em crise até ao abalo dessa agora longínqua crise de 2010. Amaral Netto leva consigo o pictorialismo humanista que é recorrente na sua prática, aliado a uma vontade de observação não ideológica (mas consciente de que esse é um dos impasses da coerência documental), e, com a certeza de estar a entrar numa dimensão declaradamente política que só existia de forma cifrada na sua obra.

Sabendo que esta aproximação entre a dimensão formal da imagem e o seu potencial conteúdo político é problemática, Amaral Netto parece querer colocar-se na humilde e singular posição do observador relutante (e não é fortuita a relação que também aqui se pode estabelecer com aqueles que o antecederam no mesmo tipo de viagem), para quem a imagem «não é senão uma outra forma de escrita, um género de sinal gráfico que se autonomiza daquilo que representa, ou da forma que esta aparenta, ou daquilo que ela essencialmente é»[9].  Esta demarcação não serve para se afastar do seu objeto de inquirição, mas acima de tudo para suportar a historicidade do seu gesto e a relação de reciprocidade e pertença ao domínio das dinâmicas sociais que pretende observar e dar conta.

 

Uma das características do conjunto de imagens que integram Recta (2014) é o seu forte pendor para a paisagem. Existem outras aproximações pontuais que são mobilizadas pela necessidade de reportar a presença humana, os seus gestos e outros elementos da cultura material contemporânea, mas a imagem do território é a que caracteriza este trabalho. Um dos elementos fulcrais deste levantamento visual é a imagem de um país interior (e a interioridade e desertificação das regiões interiores tem sido uma evidência acentuada desde meados do século passado) que se tem constituído como um dos principais problemas políticos da era democrática. A instabilidade gerada pelo êxodo sistemático das populações do interior e da raia para as zonas metropolitanas e litorais é porventura o principal responsável pelos desequilíbrios demográficos que têm assolado a estrutura económica do país, contribuindo para a desproteção de populações nas áreas da saúde, educação e emprego, diminuição da natalidade, falta de acesso a serviços públicos, incúria do património material, imaterial e paisagístico e as consequentes perdas que todos estes fatores geram e despertam.

Numa imagem particularmente subtil desta coleção, podemos ver uma pequena escarpa, daquelas que sem pensar encontramos nas margens dos caminhos e das estradas, como vestígio da terra que foi roubada à terra em nome de uma certa ideia de progresso. Nesse declive de terra ainda podemos ver as marcas da escavadora que com os seus dentes de aço rasgou o terreno para permitir o controlo e a reorganização do espaço. Muitas das imagens deste conjunto expõem a ação do homem sobre o meio natural, mas esta imagem, na sua simplicidade, enuncia acima de tudo a omnipresença de uma ideia de progresso que põe a descoberto desde o século XX a dicotomia do país, desabitado que tem, no interior as marcas que os centros políticos escolheram para si, à revelia daquilo que serão os legítimos interesses das populações autóctones.

Noutra imagem igualmente arguta, um quadrúpede de porte médio (um cão?) desloca-se alheado no meio de uma estrada deserta no meio de prédios. Uns construídos, não sabemos se já habitados, outros por construir. Na réstia de horizonte natural que conseguimos observar do ponto onde o fotógrafo nos coloca, conseguimos imaginar que este é um pequeno aglomerado urbano, contemporâneo, que irrompe da paisagem outrora rural, contribuindo para aquilo a que Álvaro Domingues definiu como «paisagem transgénica»[10].

 

Mas aquilo que parece interessar a Amaral Netto é a fraseologia do território (para usar um termo roubado a Roland Barthes), no sentido em que a fraseologia enquanto prática analítica permite destacar e caracterizar os elementos que compõem uma frase ou um texto, questionar a sua morfologia, tentar decifrar as especificidades de um determinado uso das palavras e das regras que as aproximam. Ao  percorrer a paisagem que se desdobra perante si como um caleidoscópio de palavras que sintetizam os mitos, os gestos e a memória que a paisagem encerra e os novos gestos que a refazem, o artista especula sobre essas qualidades míticas e circunstanciais que nos permitem observar o impacto da pérfida condição sociopolítica do presente, que se afirma sem pudor sobre o equilíbrio que outrora reconhecemos nos binómios campo/cidade, centro/periferia, típicos de uma organização societal do século XIX.

As cerca de 150 imagens que integram Recta são anotações nas quais Amaral Netto ensaia a análise morfológica da paisagem do território nacional através da projeção expressiva[11] das circunstâncias sociopolíticas do momento histórico das crises financeiras mundiais e do Programa de Assistência Económica e Financeira de 2011-2014 em curso nesse momento.

Carros estacionados em frente a portões de habitações ou em caminhos florestais; pessoas dentro de carros, estacionados em ruas residenciais, ou de passagem pelo centro da cidade mais próxima;  fachadas de casas de construção recente, muitas vezes ainda por acabar; jardins, logradouros, descampados com terras removidas recentemente, fábricas e construções industriais, paredes cegas, muros de segurança, traseiras de aglomerados urbanos, vegetação abundante, natural e humanizada, estaleiros de obras e materiais de construção. Estes são os motivos que compõem a paisagem que Amaral Netto descobre, presa entre uma ideia do mundo natural que há muito não existe e as novas formas de vida que, pela inconstância económica de quem vive entre crises, acaba por ser uma miragem. Esta imagem do país ecoa a caracterização que Allan Sekula faz do Canadá nas suas Lições de Geografia[12], como um país que vive absorvido pela pertença a uma certa sociedade norte americana pela qual é largamente ignorado. O país que Duarte Amaral Netto descreve é também amplamente esquecido tanto pelos centros decisores políticos nacionais, como do panorama mais alargado da União Europeia, e, podemos mesmo, replicando as palavras de Sekula, afirmar que o interior de Portugal ocupa uma zona de indiferença conceptual: ignorada, insignificante, simultaneamente igual e diferente, mas de formas que não parecem importar muito num esquema de coisas «Europeu».

 

APORIAS DO OTIMISMO E IMAGENS DO CRESCIMENTO ECONÓMICO

 

No período entre 2015 e 2019, durante o primeiro governo de António Costa (que ficou conhecido na gíria da comunicação social como «geringonça» por, em contraciclo com o que se passou no resto da Europa no mesmo período, ter sido constituído com o apoio de uma maioria parlamentar de esquerda), deu-se um milagre económico. Esse milagre fundou-se sobretudo na ascensão de um modelo de desenvolvimento da economia que, perante a incapacidade de se centrar nos sectores da extração e da transformação, se entregou à venda dos ativos que melhor nos caracterizam[13]: uma média de 2500 a 3200 horas de sol por ano, lugar no pódio dos países mais seguros do mundo numa estatística do Global Peace Index[14], paisagens diversas e pouco exploradas de grande beleza natural, património cultural de singular qualidade e valor histórico, gastronomia a condizer, cidades sedutoras e cosmopolitas. Acresce a esta lista de atributos um custo de vida baixo (festejado em muitos sites de viagens como o verdadeiro el dorado do turismo contemporâneo[15]), consequência direta de um nível remuneratório médio absurdamente abaixo da média dos países da OCDE[16], e, uma lógica imobiliária correspondente a esse nível remuneratório, embora com muitas cambiantes, por força de uma cultura da habitação errática e da disparidade dos modos de vida nos diversos pontos do território.

É neste contexto de forte aposta no turismo como principal força do desenvolvimento económico que Duarte Amaral Netto produz um conjunto alargado de fotografias de interiores de habitações, maioritariamente localizadas nas principais cidades do país, com o claro objetivo comercial de as documentar para que os seus proprietários as pudessem anunciar em plataformas de aluguer temporário para o mercado do turismo. Este trabalho – técnico, neutro, desapaixonado, desideologizado – assume a partir de certa altura um lugar muito importante no decurso da obra que havia sido iniciada em Recta. Não sendo à partida um trabalho criativo ou artístico, por ser resultado de encomendas com finalidades práticas muito circunscritas e para as quais há uma linguagem visual muito específica a cumprir, e não obstante a sua acuidade a responder a essa encomenda; este conjunto de imagens permite a Amaral Netto repensar alguns aspetos socioculturais e económicos que caracterizam a flutuação dos mercados imobiliários devido à adesão acentuada à cultura da hospitalidade e do turismo de massas.

Com o levantamento que desenvolve em Recta, ainda em fase de edição, este trabalho técnico e anónimo, de certa forma comprometido com o mercado que pressiona e asfixia as dinâmicas já de si frágeis do sistema habitacional nacional, permite a Amaral Netto interpretar e sintetizar alguns dos aspetos que, já estando presentes no trabalho anterior, ainda não eram decididamente o fulcro da sua investigação.

Este conjunto de imagens que Amaral Netto convoca para esta exposição é a linha que estabelece a ligação entre a imagem do país em perpétua crise económica e social que se revela em Recta e as dificuldades sistémicas que se identificam em Raquel (2020). Amaral Netto percebe nesta família de imagens, uma mecanicidade radical que as coloca «contra a possibilidade de uma estética não ideológica; pois qualquer resposta a uma imagem é inevitavelmente enraizada no conhecimento social – especificamente na compreensão social dos produtos culturais»[17].  Este corpo de trabalho é assim, além de um ponto de contacto entre o trabalho anterior e a sua incursão ao universo declaradamente socioeconómico de Raquel, um exemplo de desconstrução (auto) crítica das circunstâncias atuais do medium, e, das insidiosas formas através das quais um meio com um potencial tão revolucionário pode facilmente ceder e acomodar-se às necessidades neoliberais.

 

RAQUEL, NOME PRÓPRIO – A VOZ DO OUTRO EM NÓS

 

«Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por si, fazem-na com as circunstâncias encontradas, transmitidas e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos[18]

 

Uma voz radiofónica interroga por que razão algumas espécies de aves migram e outras não. Ouvimos esta linha de abertura enquanto os nossos olhos focam o ritmo fluido das luzes dos automóveis que circulam em hora de ponta numa artéria de uma das vias rápidas de acesso à capital. A resposta avança com a explicação clássica à pergunta – a competição por alimento no seu habitat de origem leva a que algumas espécies, maioritariamente associadas aos trópicos, se desloquem para outras áreas geográficas em busca de alimentos.

A imagem fixa num aglomerado suburbano, dormitório da capital, conhecido por albergar na maioria trabalhadores, que todos os dias rumam a Lisboa para suportar uma economia principalmente baseada no sector terciário, a qual até ao início da pandemia mundial COVID-19 supria o essencial retorno pecuniário para a manutenção de uma vida.

Uma mulher de meia idade acorda na sala de um pequeno apartamento na periferia. Entre os primeiros gestos do dia, uma chávena de café e um cigarro à varanda, percebemos que vive com uma tia com quem troca impressões acerca do dia que terá pela frente. As duas mulheres demonstram uma relação tímida mas terna, de uma amizade que transcende a afinidade familiar – ambas num país que não é o seu, a lutar contra as adversidades que se impuseram, que provocaram a sua emigração e que continuam a inscrever nos seus dias uma profunda desigualdade social e remunerativa.

 

A falta de oportunidades, resume os esforços de qualquer condição migrante, sujeita às normas do sistema dominante que subalterniza, desumaniza, avilta e verga os mais vulneráveis.

Raquel – descobrimos-lhe o nome quando a meio da jornada de trabalho enquanto camareira de um hotel da capital pausa para telefonar e reagendar uma visita a uma casa que pretende alugar noutro aglomerado dos arredores. Em causa está a sua capacidade para, em plena crise sanitária, e, com todos os efeitos económicos e sociais que esta originou, encontrar casa e reconquistar a autonomia que muitos emigrantes perdem quando são obrigados a partilhar o espaço privado por fragilidade orçamental. Pelo meio terá ainda uma entrevista de trabalho, numa empresa que num movimento de regeneração procura contratar uma vendedora que traga outras mais valias ao negócio. Raquel é atriz e embora não seja esse o destino que a esperou no país que a acolheu, esse potencial parece ser bem recebido pela diretora que conduz a entrevista, que a imagina na apresentação dos produtos aos clientes, bem como na demonstração das novidades nas redes sociais e outras plataformas de divulgação.

É imoral que uma atriz tenha que assimilar a sua vocação neste palco, mas este aspeto do filme parece também indicar a direção do comentário de Amaral Netto – a de que a personagem desempenha o seu próprio papel, estranho e obsceno mise en abyme, e esse papel, como tantos na história do cinema, tem uma narrativa que precisa de ser contada em analepse.

O seu nome incorpora um velho diálogo (ou uma disputa) entre dois países e duas culturas (entre duas visões do mundo), e expõe a retroatividade da dominação e da colonização sob forma continuada.[19] A mulher que procura uma vida digna em Portugal tem um nome que materializa a violência a que os seus antepassados foram sujeitos desde o período colonial, um nome que funciona como um vestígio dessa dominação e que é reconhecido e sublinhado por Amaral Netto quando escolhe precisamente o nome da mulher como título do filme. Um nome próprio tem como função, como nota Craig Owens citando Derrida «(…) inscrever a pessoa (ou o lugar) que designa dentro de um sistema de diferenças, obliterando desta forma a unicidade ao tornar a identidade uma função de posição dentro de um sistema. “Nomear dar nomes que irão ocasionalmente ser proibidos de pronunciar, tal é a violência originária da linguagem que consiste em inscrever dentro de uma diferença, em classificar, em suspender o vocativo absoluto”.»[20].

Esta questão do nome é importante porque identifica e questiona um «conflito antropológico»[21] iminente, que carateriza a ideia da denominação como uma extensão da subjugação e da violência do passado colonial e a sua subtil progressão no atual complexo socioeconómico.

Ficamos a saber no genérico do filme que Raquel, título do filme, além de ser o nome da personagem Raquel, é também o nome da atriz Maria Raquel Rocha. O autor espelha através dessa aproximação, a intrincada problemática da relação da verdade factual com o indício documental e com a construção ficcional, pois esta é uma das questões fundamentais da representação.

Um dos maiores problemas que se colocam à representação de alguém – em fotografia, no cinema, em literatura, num jornal, ou na televisão – é a dificuldade de representar esse Outro sem que essa representação seja falsa, incompleta, imprópria, intempestiva ou desfasada. Esta questão é ampliada quando pensamos que a um Outro subjetivo, individual ou coletivo, se soma uma quantidade inalienável de pontos de vista do autor; pontos de vista que devem aqui ser entendidos enquanto posicionamentos naturais e níveis de contacto que este estabelece, não apenas pela necessidade estratégica de alguém que necessita dessa definição – porque vai representar – mas porque esse posicionamento perante o Outro se assume de alguma forma espontaneamente no diálogo que observador e potencial representado assumem no mundo real – sujeito e objeto enquanto agentes dessa conversa. É por isso que o nome Raquel assume a importância de, ao convocar o ubíquo «conflito antropológico» contido no nome que invoca a visão e a linguagem do agressor, estabelecer em simultâneo a base para essa conversa que permite ao descendente do opressor juntar a voz à sua, como momento de valorização mútua.

Se a linguagem fotográfica de Amaral Netto é, como já questionámos, um território nebuloso onde a crueza da representação neutra da linguagem documental se dissolve com a poética da vida quotidiana (abrindo talvez por isso um outro sentido à ideia de que os fotógrafos, mais que criar fantasias, podem «adicionar verdade a meros factos»[22] tal como Henry Peach Robinson projetou em finais do século XIX), a verdade é que Raquel nos obriga a considerar a dupla-face da representação.

Assim, toda a carga histórica que questiona o lugar de fala do autor, da sua legitimidade de representar ou de falar em nome de um Outro, é, na sua obra mediada por uma inegável adesão pessoal à posição nua e possivelmente desprotegida do seu interlocutor.

Amaral Netto incorpora na sua vida a operação de inversão a que Foucault se refere na sua notável conversa[23] com Deleuze e assume que o Outro a que se refere, social ou culturalmente mais ou menos próximo, será também integrante da sua história pessoal. É desse ponto comum, na confluência das histórias pessoais, que se constrói a sua visão da historicidade coletiva, nos tempos de uma crise sanitária que criou condições de entendimento e partilha das singularidades da condição humana, estupefacta perante as ofensas do sistema financeiro e político.

Na obra recente de Duarte Amaral Netto as representações servem acima de tudo para refletir acerca dos pontos comuns e circunstanciais que aproximam o sujeito social do agente criativo e da figura do Outro enquanto um próximo, pessoal e social. Essa renovação de vontade comunicante é visível na sua obra anterior, veja-se por exemplo Luda, de 2006.

Parece então, haver uma tentativa de colocar a sua voz ao serviço do Outro excluído ou sub-representado depois de ter obtido «permissão para narrar»[24].. Como nos indica Gayatri Spivak a propósito da proposta de Derrida, de uma reescrita do impulso estrutural utópico como forma de «(…) tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós»[25], pois essa parece ser mesmo uma prerrogativa que já se entende em obras anteriores como Z ou Recta, embora de forma menos evidente que em Raquel. Essa «permissão para narrar» é naturalmente simbólica de uma alteração relevante na sua proposta de representação. Na sua obra recente iniciada em Recta, Amaral Netto formula uma aproximação à realidade do seu país, na qual amplifica as questões dos limites da representação documental e da construção ficcional que antes constituíam o cerne das suas pesquisas, tornando-a observante da necessidade de reconciliação que toda a representação aparenta favorecer hoje. Essa alteração ou desvio radica num mal-estar generalizado com as circunstâncias socioculturais dos modelos de vida fundados em economias de mercado, com as discrepâncias que, numa fase de desenvolvimento pós-industrial, tardam em ser resolvidas.

 

Amaral Netto coloca Raquel no centro de uma disputa pelo espaço da cidade entregue à financeirização e alheia às necessidades vitais dos seus habitantes. Já não se trata de uma cidade enquanto corolário da hospitalidade incondicional utópica de que nos fala Derrida mas de uma metrópole neoliberal impiedosa. Como argumenta Pedro Levi Bismark «se podemos falar de uma metrópole neoliberal não é apenas porque o neoliberalismo reproduz uma espacialização própria – ligada aos seus processos financeiros –, mas porque este põe em marcha toda uma nova economia política da urbanização que desarticula a relação entre os três eixos fundamentais que produziram a cidade social-democrata: modelo político (Estado social e políticas keynesianas), modelo de produção (fordismo) e modelo de configuração territorial (Estado-nação)»[26]. É exatamente este modelo de cidade pós-humana que está em causa em Raquel e, retroativamente, na análise que Amaral Netto faz em Recta e em Interiores.

Amaral Netto adquire em Recta a dose de projeção e identificação com o seu Outro (os que habitam o seu país), que lhe permite, passados anos de crise social e económica, romper com a ética proibitiva que a indignidade de representar o outro[27] sujeita aos discursos da representação desde os anos 60, para levar a cabo uma dilacerante interpretação que o inclui como parte interessada nessa recomposição que a representação do Outro releva. Não pretende ser a consciência burguesa daqueles que «não sabem ou não podem representar-se»[28] como argumentou Marx em 18 de Brumário, tende antes a questionar os limites do aparato representacional e as aporias da imagem num mundo onde tudo, e até a própria noção de representação, parece ter sido restringida. Na prática, e como Said aponta «onde estão factos senão incorporados na história e, em seguida, reconstituídos e recuperados por agentes humanos agitados por qualquer narrativa histórica percebida, desejada ou ambicionada, cujo objetivo futuro é restaurar justiça aos despojados?»[29] .

 

No fim de um dia de trabalho, que começou com os primeiros raios de sol, e incluiu conversas, uma entrevista e a busca por um lugar para habitar, Raquel é surpreendida pela notícia da casa que pretendia arrendar já não estar disponível. Cansada e desiludida regressa a Lisboa como quem regressa a um sítio onde não a reconhecem.

[1]           «Quis saber quem sou» – primeiro verso da canção «E depois do Adeus» interpretada por Paulo de Carvalho, que serviu de primeira senha à revolução de 25 de Abril de 1974.

[2]           SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy: Routledge, Londres e Nova Iorque, 2003 capítulo 13, «Growing hostility, I. The Social Atmosphere of Capitalism» p.143. «O processo capitalista, (…) eventualmente diminui a importância da função pela qual a classe capitalista vive. (…) tende também a desgastar as camadas protetoras, a destruir as suas próprias defesas, para dispersar as guarnições de suas fileiras. E finalmente observamos que o capitalismo cria um estado de espírito crítico que, depois de ter destruído a autoridade moral de tantas outras instituições, no final das contas vira-se contra si próprio; o burguês descobre, para seu espanto, que a atitude racionalista não para nas credenciais de reis e papas, mas prossegue para atacar a propriedade privada e todo o esquema de valores burgueses. A fortaleza burguesa torna-se assim politicamente indefesa. Fortalezas indefesas convidam à agressão, especialmente se contiverem riquezas. Os agressores vão-se impor através de uma hostilidade racionalista – como sempre o fazem. Sem dúvida, é possível, por algum tempo, suborná-los. Mas este último o recurso falha assim que eles descobrem que podem ter tudo.»

[3]           A premissa da viagem é algo que já sabia de antemão ser impossível de responder. É precisamente essa impossibilidade de se representar um país (seja por imagens, texto, números, etc.) que me atraiu, pois há sempre algo que fica de fora, que é excluído. Tal como num enquadramento. Uma viagem pelo centro e com pontos de paragem decididos por uma chave do Euromilhões só vieram facilitar e desresponsabilizar-me desse objetivo declaradamente falhado. (Duarte Amaral Netto, excerto de troca de email com o autor).

[4]           SARAMAGO, José. Viagem a Portugal: Porto Editora, 2016 (25ª edição), (1981).

[5]           TORGA, Miguel. Portugal, 1950.

[6]           «O ano que agora está a terminar foi talvez o ano mais difícil de que tenho memória desde 1974, mas foi também o ano em que mais semeámos para futuro para que uma crise como aquela que estamos a viver não volte a ocorrer» in  https://www.rtp.pt/noticias/politica/passos-coelho-confirma-2012-como-o-mais-dificil-de-que-tem-memoria_n613863

[7]           «O que posso dizer e reafirmar é que todas as previsões apontam num sentido: de que, em 2014, a economia portuguesa recupere em termos de crescimento e que, por essa razão, ao longo de 2013 se espera uma inversão dessa tendência recessiva» in https://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=27&did=94759

[8]           GRAMSCI, Antonio. Selections from the Prison Notebooks of Antonio Gramsci: ed. and trans. Quintin Hoare and Geoffrey Nowell-Smith, Londres, Lawrence & Wishart, 1971, p. 276.

[9]           MITCHELL, W.J.T. Iconology Image, Text, Ideology, The University of Chicago Press, Chicago, 1986 p. 30. Aqui Mitchell alude a uma definição de imagem tal como seria colocada por Jacques Derrida e que sublinha o caráter contextual e participativo do significado das mesmas.

[10] https://www.publico.pt/2019/06/23/opiniao/ensaio/paisagem-transgenica-1877100

https://www.revistapunkto.com/2011/07/destruicao-registos-do-trauma-da-perda.html

https://www.contrapontoeditores.pt/produtos/ficha/volta-a-portugal/20066736

 

[11]         WOLLHEIM, Richard. «What the Spectator Sees» in Painting as an Art: Thames and Hudson, London, 1987, p. 83. «expressive projection is a form of seeing in which projective properties are experienced…».

[12]         SEKULA, Allan. Geography Lesson: Canadian Notes in Art Isn’t Fair, Further Essays on the Traffic in Photographs and Related Media: Mack, Londres, 2020 p. 83.

[13]         É particularmente certeira a descrição de Pedro Levi Bismark: «A transformação radical das zonas centrais do Porto e de Lisboa, nos últimos anos, explica-se pela convergência de quatro factores. Primeiro, a longa crise estrutural do tecido económico e produtivo das cidades. Segundo, a aposta decisiva na indústria do turismo que levou, sobretudo no Porto, a uma estratégia de reabilitação urbana sustentada no investimento privado e baseada numa lógica kitsch e fachadista cujo modelo era o “parque temático”. Terceiro, as políticas de austeridade e as iniciativas legislativas do NRAU (Novo Regime de Arrendamento Urbano) e do programa de Vistos Gold, que contribuíram tanto para uma entrada significativa de capital estrangeiro em Portugal, como para a liberalização do mercado imobiliário (fim do congelamento das rendas, facilitação de despejos, contratos com ciclos de duração mais curtos). Quarto, a emergência de plataformas online (Airbnb e uniplaces) cuja extraordinária rentabilidade foi usada por agregados afectados pela crise, mas sobretudo, por investidores imobiliários que adquiriram edifícios inteiros para serem transformados em alojamento local.» in «A Cidade na Época da sua Reprodutibilidade Financeira» in Revista Punkto, Edição #25, Outono de 2019, acessível em https://www.revistapunkto.com/2019/12/a-cidade-na-epoca-da-sua_15.html

[14]         https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/comunicado?i=portugal-mantem-terceiro-lugar-no-global-peace-index

[15]         CALASSO, Roberto. The Unnamable Present: Allen Lane/Penguin, 2019, p. 61. Roberto Calasso descreve bem a faceta terrorista do turismo contemporâneo: «Ao descrever um lugar, as pessoas dizem imediatamente se ele é imaculado ou desfigurado pelo turismo. Falam sobre o turismo como uma doença de pele. E ainda assim o turista ideal gostaria de visitar lugares intactos pelo turismo, da mesma forma que o terrorista ideal gostaria de operar em locais desprotegidos por medidas de segurança.»

[16]         http://www.oecdbetterlifeindex.org/countries/portugal/

[17]         ROSLER, Martha. «In, around, and afterthoughts (on documentary photography)» in Decoys and Disruptions Selected Writings, 1975–2001: October books/MIT Press, Cambridge e Londres, 2004, p. 186.

[18]         MARX, Karl; «The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte» in Marx’s Eighteenth Brumaire (Post)modern Interpretations: Mark Cowling and James Martin Pluto Press, Londres, 2002, p. 19.

[19]         A título de curiosidade, numa das conversas preparatórias para a presente exposição, Duarte Amaral Netto confidenciou que a sua avó paterna se chamava Maria Raquel, e que a sua bisavó era da Bahia de onde a Raquel (também Maria) tem família. Ana, a «tia» da Raquel no filme chama-se Prudenciana; já em Portugal cortou o nome para Ana para simplificar a comunicação.

[20]         OWENS, Craig. «Improper Names» in Beyond Recognition – Representation, Power, and Culture; University of California Press, Berkeley, Los Angeles, Londres, 1992 p. 296.

[21]         Ibid. p. 285.

[22]         A frase de Robinson é «…we go further and contend that we can add truth to bare facts.» ROBINSON, Henry Peach. «Idealism, Realism, Expressionism» in The Elements of a Pictorial Photograph: Bradford/Londres, 1896 – reimpresso em TRACHTENBERG, Alan (org.). Classic Essays on Photography: New Haven, 1980, pp. 91–97.

[23]         DELEUZE, Gilles; FOUCAULT, Michel. «Intellectuals and power» in DELEUZE, Gilles. Desert Islands and other texts; Los Angeles (Ca.)/London, Semiotext(e), 2004, p. 207. «What I mean is, we laughed at representation, saying it was over, but we didn’t follow this “theoretical” conversion through – namely, theory demanded that those involved finally have their say from a practical standpoint.»

[24]         Expressão tomada de empréstimo de Edward Said que a utiliza a propósito da legitimidade que certos interlocutores Ocidentais como Noam Chomsky conseguiram aquando das suas descrições do conflito israelo-palestiniano.

[25]         SPIVAK, Gayatri. «Can the Subaltern Speak?» in Marxism and the Interpretation of Culture: Cary Nelson and Lawrence Grossberg eds. Londres, Macmillan Press, 1988, p. 308.

[26]         BISMARK, Pedro Levi. «A Cidade na Época da sua Reprodutibilidade Financeira» in Revista Punkto, Edição #25, Outono de 2019, acessível em https://www.revistapunkto.com/2019/12/a-cidade-na-epoca-da-sua_15.html

[27]         DELEUZE, Gilles; FOUCAULT, Michel. «Intellectuals and Power – A conversation between Michel Foucault and Gilles Deleuze» in Language, Counter-Memory, Practice: selected essays and interviews by Michel Foucault: Cornell University Press, 1980.

[28]         «They cannot represent themselves; they must be represented. Their representative must also appear as their master, as an authority over them, as an unrestricted governmental power which protects them from other classes and watches over them from on high.» In MARX, Karl. «The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte» in Marx’s Eighteenth Brumaire (Post)modern Interpretations Edited by Mark Cowling and James Martin Pluto Press, Londres, 2002. p. 101.

[29]         SAID, Edward. Permission to Narrate: London Review of Books, Vol. 6, nº 3, 16 fevereiro 1984.

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