Sérgio Mah (SM): Gostaria de começar por uma questão que me parece central no teu trabalho. O facto da tua fotografia se fundar num constante apelo pela sugestão narrativa da imagem. Enquanto espectador fica-se sempre com a sensação de que imagem é apenas um indício de algo que se prolonga para além do que é representado, além do momento único que é tornado visível.
Duarte Amaral Netto (DAN): A narrativa pressupõe uma ordem, uma sucessão de eventos que podem ou não respeitar o tempo em que ocorrem, e depende da aleatoriedade do narrador em colocar determinado acontecimento um a seguir ao outro. Não é por acaso que dizemos “contar uma história”, pois isso significa colocar os eventos uns a seguir aos outros de acordo, na maioria das situações, com o tempo em que ocorrem, da mesma forma que contamos coisas numa linha, umas atrás das outras. Essa ordem depende do que se quer salientar pois é uma história contada, daí a arbitrariedade, uma vez que a sequência narrativa é uma sequência construída pelo narrador como é referido no texto de Gilberto Perez, The Narrative Sequence
Na fotografia a representação do que lá está é sempre incompleta, sabemos que o enquadramento deixa fora parte do mundo, é uma condição do meio por oposição à pintura. Neste sentido é legítimo perguntar o que mais podia ser visto, de outra perspectiva, noutro espaço ou noutra altura. A fotografia é um fragmento de uma sequência. É aqui que reside o meu interesse pelo potencial narrativo da imagem, como um fragmento, como um momento por ser resolvido. Apercebi-me destas questões a partir da primeira imagem que fiz do meu avô (Lisboa, 1999). Fui fotografá-lo por outros motivos, mas a escolha do grande formato para realizar a fotografia levantou outras hipóteses que começaram por ser condicionantes como o tempo de exposição. O simples facto de ter de dirigir e orientar os gestos para que não houvesse um arrastamento durante o segundo e meio que durou a exposição suscitou uma transformação de identidade. Para mim, a partir daquele momento, deixei de estar a fotografar um familiar para começar a encenar uma personagem com aquelas características, inserida naquele espaço, com aquela expressão. Percebi também que a presença da câmara implicava teatro, no sentido em que a pessoa passa a representar uma imagem que tem de si ou que quer projectar de si. Nesta, e nas imagens seguintes que realizei dentro de orientações comuns, interessa-me o que fica por dizer e não pode ser representado pela própria limitação da fotografia se remeter para um tempo e espaço único. Na primeira exposição individual que fiz as legendas apenas indicavam o local onde tinham sido realizadas, como sendo o palco onde aconteceram, mas cedo comecei a utilizar as legendas com a função de abrir ainda mais essa sugestão narrativa para fora da imagem. Fotografias como: “Rumor”, “Ontem à noite” ou “Tanta gente na piscina”, por exemplo. Um ponto central e comum entre todas elas, estas que foram referidas e as outras com estes pressupostos, é o da representação num “estado de absorção” descrito por Michael Fried, no qual as personagens estão imersas no seu próprio universo, aparentemente sem consciência da câmara, logo afastados da ideia de presença do espectador. Quando falo de teatro faço-o pelas questões relacionadas com a representação e performance. Não estou interessado em construir imagens num “modo teatral”, que será o oposto ao de absorção. A absorção permite ter personagens que em vez de representarem o mundo estão inseridas nele. Este ponto reforça algo que considero fundamental em todos os meus trabalhos que é a fronteira entre o documental e o ficcional.
SM: Mas no teu caso a teatralidade está também fortemente vinculada a duas evidentes propensões. Por um lado, como expressão da experiência do quotidiano, através da encenação de situações simples e familiares, mas também paradigmáticas. Por outro lado, os intérpretes são pessoas do teu círculo de proximidade, são familiares, amigos, em suma, são pessoas que conheces bem. Neste sentido, representar o quotidiano é o resultado da expressão de um espaço comum e relacional, o espaço em que autor e personagens estão comprometidos num esforço conjunto de representação. Estou a pensar em imagens como Still Life [2005] ou Rumor [2006].
DAN: Esse factor, de circunscrever-me a um círculo próximo, é intencional. Sinto que assim as imagens são mais eficazes pois simultaneamente têm uma vertente privada, de acesso exclusivo, mas inscrevem-se em temas universais. Têm esta ambivalência de as próprias pessoas representarem papéis do seu quotidiano. Se por um lado são ficção porque existe a encenação, por outro são documentais porque não existe um desfasamento substancial entre o facto e a encenação.
As encenações são necessariamente simples, na maioria não existe acção, estou mais preocupado com o ambiente e com a tensão que a imagem pode passar e sugerir uma acção prévia ou póstuma. Sinto que grandes produções como as do Gregory Crewdson, produzem um efeito de espectáculo que remetem a imagem para uma esfera propositadamente ficcional e construída, e eu procuro a indefinição da linha que separa a realidade da ficção. Não quero com isto dizer que não admire os trabalhos desses autores, muito pelo contrário, como acontece com o Jeff Wall, entre outros, com quem aprendi muito pelas suas obras. Apenas quero dizer que estou mais interessado na abordagem do Jeff Wall de A view from an Apartment ou Morning Cleaning do que Dead Troops Talk por exemplo.
Num outro trabalho que venho a desenvolver desde 2006, e que consiste na criação de álbuns de família a partir de transfers para Moleskines, é naturalmente a família o assunto. Aqui todo o processo é diferente. As imagens são instantâneos feitos com Polaroid (a câmara é Polaroid, mas a película é Fuji) e já não têm naturalmente a preparação ou a imobilidade que uma fotografia com médio ou grande formato por vezes requer. Neste trabalho a procura centra-se em imagens que estabeleçam um contacto com a fotografia vernacular, especialmente com o álbum de família, e que se relacionem com os momentos típicos desse quotidiano: os filhos, as viagens, as festas de anos, Natal, os amigos, etc. Mas esta procura não é inocente, no sentido que por vezes posso recriar determinada situação para que o álbum fique mais completo e mais perto da ideia em si.
SM: Mas nessa série o tema da família serve também para abordar a experiência da memória através das imagens. O título é a esse propósito bastante sintomático, Do que nos lembramos quando nos lembramos de nós [2010]. No entanto, é um álbum de família pensado e construído de um modo muito peculiar. São imagens de um passado muito recente, porém, a técnica que utilizas torna-as aparentemente mais antigas, reenvia o presente para um passado longínquo. Não se trata portanto de preservar e trazer o passado para o presente que é a razão que leva a maioria das pessoas a fazer álbuns de família.
DAN: Quando comecei esse trabalho apercebi-me que as imagens, pela técnica utilizada, ganhavam essa ambiguidade de parecerem de um passado mais distante sendo actuais. Esta indefinição do tempo em que os registos ocorrem dão ao álbum um carácter mais intemporal, mas as fotografias acabam por dar-nos pormenores e informações que nos remetem para os dias de hoje. Apesar de ser um álbum à volta da minha família é minha intenção que o efeito produzido seja próximo da ideia de álbum de família num sentido geral e que as pessoas possam relacionar o seu arquivo mental por sugestão de algumas imagens. Daí o título da exposição ter um duplo significado, referindo-se muito directamente ao papel da fotografia e da memória, mas também a essa imagem mental sem um referente objectivo mas que acaba por ser um somatório de diversas experiências entre as quais o registo fotográfico. Serve também o título para questionar o que queremos guardar como imagem, nossa e dos outros.
Como é referido no livro Family Secrets – Acts of Memory and Imagination, da Anette Kuhn, o álbum de família é um momento no acto da construção cultural da família, ele produz a família, e por produzir formas particulares de família existe sempre um espaço de manobra nessa construção como em qualquer outro género. A ideia de poder construir um sentido de família pelo álbum, diferente daquilo que possa ser na realidade é o ponto central deste trabalho, sobre a capacidade que a imagem tem, neste caso a sequência de imagens, de manipular os factos. É incrível como os álbuns tendem apenas para os momentos felizes, mesmo que isso signifique sorrir para a fotografia e instantes depois desfazer o mesmo sorriso porque a verdade não é essa. Não estou preocupado com a veracidade ou com a honestidade que um álbum possa ter, estou interessado no controle que a imagem permite ao ponto de construirmos uma realidade paralela onde tudo possa ser como idealizámos. Nestes álbuns (tenho cinco moleskines com transfers), há momentos felizes, naturais e construídos, e indícios de intranquilidade. Não é um álbum que pretende ser fiel, se é que algum álbum alguma vez o pode ser, mas um álbum que remete para os temas da memória, representação e ficção na construção de uma ideia de família através de imagens.
SM: Interessa-te portanto menos a dimensão estritamente inventariativa e arquivística do álbum, e muito mais um modo de reelaborar a própria experiência da memória, como uma maneira de reconfigurar a percepção da história. Daí a tua tendência para misturar e sobrepor o domínio dos factos com o domínio das ficções.
DAN: Sim, é principalmente nessa confluência dos factos e da ficção que vou desenvolvendo a ideia do trabalho. A indefinição de um em relação ao outro é um aspecto que vai atravessando o meu trabalho de diferentes formas. No entanto, a abordagem ao arquivo é inevitável em trabalhos desta natureza, é inerente à sua própria forma. As ligações que um álbum estabelece estão forçosamente ligadas ao conceito de arquivo como um repositório de documentos e factos sobre determinado assunto, neste caso uma família.
Essa sobreposição também acontece com o meu trabalho posterior, The Polish Club Case, onde há uma narrativa construída a partir de dois conjuntos de imagens distintos: fotografias de um núcleo de seminaristas em Chicago; e uma série de imagens de arquivo de um jornal daquela zona e da mesma época (por volta de 1940/50).
Nos últimos anos fui acumulando uma pequena colecção de fotografias e de álbuns com o propósito de as incorporar no trabalho que agora vou apresentar. Numa dessas pesquisas encontrei uma imagem de uma sala de aula incendiada que logo suscitou uma série de ideias sobre o que ali podia ter acontecido. Partindo dessa fotografia fui construindo uma história com outras imagens. Tinha uma ideia mas não tinha imagens, e a história foi moldada consoante as fotografias que descobria e que ia juntando. Queria que o trabalho seguisse uma determinada direcção e que focasse a confiança que depositamos nas imagens como factos inabaláveis. Consegui ter acesso ao acervo de um jornal de Chicago e comprar negativos 4×5 de diferentes situações que serviram para conciliar com o grupo de imagens do seminário e dar forma à história. A minha intenção era de que este projecto fosse sobre fé num sentido lato, onde pudesse integrar uma componente mais religiosa relacionada com os conflitos entre as duas facções dos seminaristas, que culmina no incêndio e consequente suicídio dos dois responsáveis, e a fé nas imagens como documento inquestionável.
Nesta série são dados indícios da sua falsidade que não devem passar despercebidos a um espectador mais atento, mas que podem perfeitamente ser ignorados por muitos outros, levantando a questão de como consumimos imagens.
Como fonte de pesquisa ou construção da memória o arquivo é muito relevante para o que estou a fazer. Mas a dimensão arquivística interessa-me, sobretudo, pela possibilidade de subversão e manipulação do documento como uma reformulação da sua leitura e reforço da sua subjectividade.
SM: O trabalho que apresentas neste BESPhoto parece vir na linha da série que acabas de descrever. Em conjunto, estes dois trabalhos partilham o facto de recorreres a imagens pré-existentes, que se referem a um passado distante. Mas por outro lado, os trabalhos incidem sobre acontecimentos trágicos, o que parece indiciar um interesse novo da tua parte por esse jogo-limite, ou melhor por esse jogo com os limites, entre a imagem e a experiência traumática. Podes descrever as linhas gerais do projecto, bem como as origens e as motivações que nortearam o seu desenvolvimento?
DAN: Este trabalho que agora apresento começou a ser pensado há cerca de cinco ou seis anos quando descobri uns negativos de um familiar que tinha ido fazer um curso de planador à Alemanha no início dos anos 30. Tanto este trabalho como o The Polish Club Case (TPCC) começam com essa descoberta de uma ou mais imagens que despertam uma vontade de desenvolver um enredo a partir delas. Se no TPCC todo o acontecimento é fictício, neste quis alterar as datas de ida desse familiar para que coincidisse com o início da II Guerra Mundial.
Esta alteração das datas permite-me criar a história de Z, um português que se vê retido na Alemanha durante os primeiros meses da guerra. Tudo começa com a sua ida para a Alemanha a convite de um amigo para fazer um curso de planador durante o Verão. Após a invasão da Polónia Z fica retido e tenta regressar a Portugal documentando esse trajecto.
Apesar deste trabalho ser sobre uma época em que aconteceram as maiores atrocidades, não queria que o percurso da personagem tivesse esse registo visual, com a excepção de um trabalho fotográfico que faz para um cirurgião facial. Todos sabemos e vimos o que aconteceu e temos imagens bem presentes dessa barbárie. Imagens que, mais do que uma representação dessa catástrofe, são uma prova directa da sua evidência. Por todas essas imagens mais directas que guardamos há uma evocação do trauma, que reside nesse conhecimento do que vai acontecer e na impossibilidade de o impedir.
As movimentações de Z circunscrevem-se, maioritariamente, num plano familiar com algumas aproximações aos militares e cenário de guerra. Um dos pontos que me interessava tocar era o decorrer da vida quotidiana paralelamente à guerra. Essa convivência entre o terror do conflito e a indiferença do dia-a-dia. Assim o projecto desenvolve-se essencialmente a partir de álbuns de família onde está representada essa vivência e por onde a personagem se vai movimentando até conseguir regressar ao seu país. Julgo que não deixamos de pensar no que aconteceu a estas pessoas ou qual o seu grau de envolvimento com a guerra. Não me cabe a mim fazer qualquer tipo de juízo de valor destas personagens que vão surgindo, penso que neste tema isso já está muito enraízado numa opinião generalizada, mas mostrando esse lado familiar há uma sensação indefinida de quem é o agressor e de quem é a vítima. Essa ambiguidade joga com o papel do arquivo como uma determinação histórica da memória pública. As fotografias carregam um peso histórico e factual que é impossível contornar, e a sua carga e tensão é proveniente daquilo que conhecemos da história e que não deixamos de impregnar nas imagens daquela época.
(Catálogo BES Photo 2012)