Estudos para uma Narrativa

 

Um dos paradigmas contemporâneos em que se baseia a fotografia é a ideia de momento suspenso. Muitos artistas têm explorado e exagerado o potencial desta suspensão, como Tom Hunter ou Philip-Lorca di Corsia que, através de estratégias distintas e mesmo divergentes, dramatizam o instante fotográfico com o intuito da sua desmistificação. É o acentuar deste momento que permite ao fotógrafo revelar a subjectividade do olhar, do enquadramento, e do próprio instante. No fundo, o que se confessa é que o acto de fotografar transporta inevitavelmente uma construção, uma encenação (problematizando também a concepção da verdade da imagem fotográfica). A escolha de revelar uma imagem convive intimamente com a escolha de não revelar tudo o que a circunda.

As imagens que Duarte Amaral Netto (Lisboa, 1976) seleccionou para incluir na sua terceira exposição individual na Galeria Módulo de Lisboa, situam-se em torno da questão daquilo que não é visível quando se observa uma imagem fotográfica, abrindo desta forma as potencialidades narrativas de cada imagem.

O trabalho de Amaral Netto tem-se vindo a polarizar entre dois campos temáticos: o retrato e a paisagem (urbana/arquitectónica), tendo como elemento comum a ideia de imobilização do tempo. O momento escolhido para fazer a fotografia, já não é o instante decisivo, mas um instante supostamente comum. A pretensa simplicidade contraposta por uma intensa dramatização, frequentemente de cariz psicológico, é revelada através da iluminação e da postura das personagens.

Na presente exposição, denota-se uma viragem no sentido de harmonizar essa polarização, apresentando um conjunto de obras que conciliam as duas facetas do seu trabalho. As duas primeiras imagens da mostra têm a função de prefaciar a exposição, insinuando um possível tema – a procura da luz. Esta alegoria pode ser lida de forma directa: a procura pela iluminação perfeita da imagem (a busca literal, ou o percorrer de um caminho desconhecido para a atingir), e neste sentido os pontos de luz serão momentos centrais na leitura dos restantes trabalhos. A procura da luz pode também exortar, por oposição, tudo aquilo que não é visível e que constrói a imagem, tudo aquilo que a abre para uma nova dimensão.

Amaral Netto cita Wim Wenders e a frase “o mais importante é o que não se vê” para transformar o pressentir da ausência na problemática central deste conjunto de fotografias. O espaço vazio é manipulado de modo a construir e a incorporar a subjectividade de alguém que não está presente mas que está vinculado àquela imagem. Exemplar desta preocupação é “Ofélia”, 2006. Uma fotografia de um pântano aparentemente anónimo. O título atribuí à imagem uma nova dimensão de leitura – a da história da pintura, ou da sua memória. A paisagem metamorfoseia-se em cenário de um conhecido quadro, sendo que esta transformação se efectua na mente do espectador ao visualizar, na imagem, a Ophelia ausente. É como se o fotógrafo mostrasse, num plano mais aberto, o que fica para além dos limites da obra original. Amaral Netto quer explorar todo o campo potenciado pela imagem, mas que se constrói fora dela, sejam os próprios mecanismos de manipulação fotográfica, seja a narratividade sugerida por cada espectador. O que aqui se procura é a identidade da própria imagem através do irrepresentável. A negação da representação possibilita a Amaral Netto a preservação da heterogeneidade de leituras, mesmo da contradição, e assim de uma radical abertura da imagem a tudo o que a pode constituir.

 

Filipa Oliveira
In L+Arte June 2006

 

 

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