Novas notas sobre o Index

Novas notas sobre o Index

 

Novas notas sobre o Index

a memória como prática, ou acto

Verónica Metello (in Cacao Europa Nr. 1, Lisboa & Memória)

 

  1. Duarte Amaral Netto (n.1976) é fotógrafo e professor. Como modo, compõe a sua experiência pessoal em práticas da memória e metodologias para a construção sensível do sentido. Ambas confluem, profissionalmente, em projectos fotográficos como o The Polish Club Case, nomeado em 2012 para o prémio BES Photo, nas imagens feitas com polaroid e, num projecto intimo que é o dos seus álbuns de transfers de polaroid.

Os álbuns – que são álbuns de família, amigos, amantes, crianças, filhos, bichos, coisas e lugares, são projectos de fabricação de narrativa e memória, e existem desde final de 2006. Hoje, contamos 7 albums de transfers.

 

  1. Um álbum é um mapa. Desenha uma cartografia com pontos de referência, marcos como eventos, cuja narrativa tecida sobre imagens que se fazem memória[1], constituem os pontos de referência numa geografia dos afectos, das relações e das subjectividades representadas. Um desdobramento (ex-plica) é feito a cada leitura do mapa, construindo uma estratigrafia diferencial – camada a camada, da densidade da realidade, ou mundo da vida, que o actualiza. A essa construção pode chamar-se composição. Por isso, difere do que o constitui e organiza: as fotográficas, que são indice. O mapa, como mostra Deleuze no Diferença e Repetição – é orientado para uma experimentação sobre o real[2].

Um factor comum, o consenso ( consentire – sentido feito junto, em concordância – de coração a coração) que funciona como elemento aglutinador, ou do qual depende a aderência dos diferentes estratos uns aos outros, decorre de uma noção de verdade ou facto – e esta é paradoxalmente garantida pelo caracter indicial (index), documental da imagem. Como documento, a imagem fotográfica testemunha, fixa, faz a mediação e afere do consenso de uma ficção feita verdade partilhada, de uma narrativa.

Mapas de memórias, reiteradas em cada leitura, os álbuns testemunham e fazem um referente de mundo da vida, que tal como essas memórias, é artefacto e ficção. Produtos modelados afectivamente, no hábito e na memória pessoal e colectiva, que constitui a narrativa dos que nele se representam. A narrativa opera duplamente: sustém e sustém-se do mundo da vida, e compõe, co-compondo-se com um mundo da vida, o quotidiano-narrativa. O mundo da vida, “não é uma estrutura estática e acabada da experiencia, mas uma sedimentação complexa e intersubjectiva ou se fundem todas as significações logicas, cientificas, religiosas, estéticas, etc., que aí depositam os seus vestígios”[3]. Daí decorre a sua plasticidade[4]. À imagem do quotidiano vivido, o álbum-mapa é actualizado a cada leitura, adensando, a sedimentação que afere a consistência da sua narrativa. Um fazer de si: “no processo de usar – produzir, seleccionar, ordenar, mostrar – fotografias, a família está no processo de se fazer a si mesma”[5].

 

  1. O quotidiano, é feito de estratificações, molaridades[6], solidificação de convencionalidades. Estas garantem um equilíbrio de superfície, a ideia de finalidade e sequência, a ordem da recognição para a inscrição da vida no bom senso e no senso comum. O mundo, o sujeito e o real são os seus princípios. Bruce Bégout no La Découverte du Quotidien, explica: o quotidiano decorre de uma fabricação da qual depende a operacionalidade e objectividade da vida. Funciona como um processo de aclimatação[7], erigido sobre repetições feitas hábitos[8], tecendo uma trama comum de sentido que estrutura um contexto ou, o sentido partilhado. E, vemos, a teia, é a narrativa. A finalidade da quotidiano como processo e produção de hábito é a familiarização com o mundo, fazendo possível um mundo da vida, onde o fluxo da experiencia tem um lugar de inscrição, num contexto significante. Essa objectivação permite o desdobramento temporal da vida numa cronologia sem termo, um futuro em progresso, “genealogizando” o agora ( o instante que se faz imagem na fotografia) no contexto. A legitimação da realeza medieval é feita, e confirmada, pelo documento onde figura a árvore que se enraíza no ventre de Adão, o primeiro. A construção da subjectividade na relação com o grupo familiar é feita – no caso do álbum de família, através da integração nos rituais quotidianos, práticas mundanas-, confirmando pela imagem onde o duplo de si num passado, no contexto de um evento que constitui a narrativa comum, está documentado.

O “ver fotograficamente”, sobre o qual escreve Celia Lury[9] na sua leitura da construção subjectividade modernista por via dos dispositivos tecnológicos da produção de imagem, passou a ser constituinte. A imagem e o olhar que através deste se faz, pelo enquadramento, é tanto testemunho como produção. Produz, nisto, essa narrativa a ser inscrita, tecida, entretecida nas demais narrativas constituintes. Segundo Lury, o “ver fotograficamente” trata-se tanto de um modo específico de cognição como uma técnica de rememoração que afecta simultaneamente as “configurações subjectivas como a identidade colectiva, a experiencia e a informação”[10]. O aspecto central na definição “ver fotograficamente” é: a subjectividade contemporânea constitui-se como uma pós-vida do acto fotográfico, como um “subject-effect” de, a contra-memória da fotografia[11]. Ambas as funções – perceptiva e de constituição de memória, são definidas pelo paradoxo da fotografia na representação : é a imagem de um refente material no mundo, mas o seu caracter indicial, abre uma temporalidade particular, incapaz de desvinculação a esse referente material, do qual participa pela sua ausência.

O isto-foi de que fala Barthes na Câmara Clara[12] é a constatação do fundamento, ou o ventre de Adão. Sobre isso escreve Maria João Baltazar[13]: “esse instante de constatação, “isto foi”, será progressivamente reenquadrado quando regressar “ao que aconteceu”: o movimento de rememoração tão propicio ao médium fotográfico, corresponde a uma compreensão sempre renovada do passado, a voltar lá acrescentando as peças adquiridas agora, sedimentando novas possibilidades e permitindo com esse resgate uma promessa e sentidos futuros. Estabelece-se assim a possibilidade de um espaço de transição, compreendendo-se o significado e valor de cada fragmento deixado para trás, espécie de prolongamento do noema da fotografia, dilatando-se essa inevitabilidade Barthesiana até um momento posterior, onde a participação e edificação da memória tornam o objecto fotográfico como ponto de partida numa mediação presente relativamente “ao que aconteceu” e ainda resgatando o sentido e a possibilidade de vida num porvir esperançoso”.[14]

 

  1. Um índice (index), segundo a pharenoscopia de Charles Sanders Pierce, aponta o ponto de coincidência entre duas porções de experiência[15], para a qual remetem mas que não são. O índice é em si uma coisa, mas remete sempre para outra da qual é causa. Um transfer é um index, mas é também a impressão de uma impressão. A impressão é o método usado para criar transfers. É uma técnica. Mas também um afecto. É da ordem da superfície – modelando, mas também é da ordem da profundidade, movendo. Co-movendo, ou movendo com (o) outro. É o que persiste na memória, quando a narrativa é difusa. Uma impressão é identitária (digital, pegada, beijo), luminosa (fotográfica), afectiva (comoção, emoção, fazer impressão), expressiva (ruga, prega). A impressão funciona num agenciamento: do gesto com a superfície, imprimido e impresso, constituindo uma máquina de sentido territorial, de índice, entre duas temporalidades. A impressão é binária, sempre binária. Faz-se e resulta, no e do entre-dois, junto, testemunhando pela ausência uma presença, fazendo presente o que falta. Assim, se por um lado a impressão faz da ausência qualquer coisa como uma potência de forma[16], por outro, traça uma temporalidade própria. Não somente as impressões aparecem elas mesmas como “coisas”– como elas são também esse presente reminescente visual e táctil, de um passado que não para de “trabalhar”, de transformar o substrato onde imprimiu a sua marca[17]. A descrição da experiência da imagem indicial centraliza um paradigma – o da distância que se desdobra em constante afastamento por maior que seja a proximidade. E define-se por um anacronismo cujo eixo é uma colisão temporal (que) é também uma colisão visual – uma colisão de diferentes maneiras de parecença . Elas tem no entanto um ponto em comum, que é também o seu ponto de prática comum: trata-se do contacto[18]. Testemunhado pela forma, ou imagem, que na sua presença é ausência e, por isso, desdobramento de uma outra temporalidade. Na colisão de um antes com um agora e destes com o vestígio que lhes sobrevive – o índice, a distância é dada à visibilidade numa síntese temporal e espacial. Na proximidade da marca, do vestígio, na longura da sua matriz e na virtualidade do gesto de contacto – irremediavelmente distante. Aura. Sim. Walter Benjamin. O que este definiu como aparecimento único de algo distante, por muito perto que se esteja (einmalige Erscheinung einer Ferne, so nah sie sein mag,) ou uma estranha trama de espaço tempo[19], é o que Didi-Huberman define como um espaçamento trabalhado – e até produzido, poder-se -ia dizer, urdido em todos os sentidos do termo, como um tecido subtil, ou então como um – acontecimento único, estranho ( sonderbar), que nos circundasse, nos agarrasse, nos prendesse na sua urdidura. E que acabaria por dar origem, nessa “produção”, ou nesse golpe de visibilidade, a algo como a uma metamorfose visual especifica, emergindo precisamente desse tecido, desse casulo – que é um outro sentido da palavra Gespinst – de espaço e de tempo. A aura seria assim como que um espaçamento trabalhado e originário do observador e do observado, do observador pelo observado. Um paradigma visual que Benjamin apresentava, antes de mas, como um poder da distancia: “ aparecimento único de algo distante, por muito perto que se esteja” ( einmalige Erscheinung einer Ferne, so nah sie sein mag)[20]. Em verdade, Benjamin distinguiu a aura do vestígio, do índice. A aura constitui a aparição de uma distância, qualquer que seja proximidade que o evoca, e o índice, ou o vestígio seria a proximidade de uma distância qualquer que seja a distancia a que possa estar o que o deixou, mas Didi-Huberman não vê qualquer factor de diferenciação, e faz disso prova com as relíquias cristãs[21]. O poder da impressão (o afecto da memória) está retratado: a capacidade de fazer presente, por reversão, o que está ausente.

 

  1. Adão ou o primeiro, a imagem do “isto foi” bhartesiano nos álbuns feitos pelo Duarte Amaral Netto, não é o momento do qual a primeira imagem ( a matriz do transfer) faz documento. Mas o momento do contacto, da impressão, onde se contrai uma temporalidade e uma visibilidade, numa dupla confirmação do índice. O transfer, através das qualidades físicas decorrentes da metamorfose visual especifica que é – testemunhadas pela sua infidelidade mimética ao real, a abrasão, imprecisão, mancha ou incapacidade de mostrar imagem -, confirma a natureza da própria matriz, a sua produção técnica e construída, e institui, por via da repetição do mesmo como um outro uma modelação da experiência no pós-vida da imagem. A presença metamorfoseada de um mesmo (matriz que é já index de algo no mundo) afirmada na dupla ausência através do outro diferente (transfer) opera um duplo re-enquadramento e a confirmação da produtividade do “ver fotograficamente”, tanto sobre a matriz como sobre o real. Este procedimento, a par da ausência de organização formal e composta do álbum convencional – o facto de não respeitar qualquer norma senão a da sequência cronológica das ocorrências, institui um novo regime de experiência e de referência.

A sua característica é a estranheza própria da articulação experimental, produtiva, do mapa de uma particular trama de espaço-tempo, urdida como esse espaçamento trabalhado, cuja plasticidade encontrada é da imanência do próprio mundo da vida, do quotidiano e das suas narrativas constituintes. Construídos, compostos, no espaço-tempo da evidência feita da ausência, em cada leitura ou actualização: a memória como prática, ou acto.

 

BIBLIOGRAFIA.

Baltazar ,Maria João, Olhar Moderno – Fotografia enquanto objecto e memória, ESAD, 2010

Bégout ,Bruce, La découverte du quotidien, Allia, Paris, 2010

Benjamin , Walter, “ L’oeuvre d’art à l’ére de sa reproductibilité technique” in Oeuvres III, Paris, 2000

Bhartes , Roland, A Câmara Clara,, Edições 70, Lisboa.

Deleuze ,Gilles , Guattari , Félix, Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio e Alvim, Lisboa, 2007

Deleuze Gilles Diferença e Repetição, Relógio d’Agua, Lisboa, 2000

Didi-Huberman , Georges, La rassemblance par contact, Archéologie, Anachronisme et Modernité de l’empreinte, Paris, 2008

Didi-Huberman , Georges, O que nós vemos, o que nos olha, 2011

Formis ,Bárbara, Esthétique de la vie ordinaire, PUF, Paris, 2010

Kuhn, Annette, Family secrets, Acts of Memory and imagination, Verso, London, New York, 1995 (1ªed), 2002,

Lury , Celia, Prosthetic Culture, Photography, memory, identity, Routeledge, New York, 1998.

Pierce ,Charles Sanders, Collected Papers, vol. II

[1] Seguimos duas referências, distintas: 1. Celia Lury, Prosthetic Culture, Photography, memory, identity, Routeledge, New York, 1998. Neste livro, a autora mostra como a experiencia perceptiva, tal como a memória, são transformadas pelo “ver fotograficamente”, criando uma cultura de memória protésica da qual decorre uma particular construção de subjectividade, feita do e no pós-fotografico. 2. Annette Kuhn, Family secrets, Acts of Memory and imagination, Verso, London, New York, 1995 (1ªed), 2002, onde por via da fotografia de família a autora reconfigura a narrativa pessoal da sua família, e da sua própria definição, no que designa práticas de memória. Interessa-nos particularmente a relação que estabelece – porque flexível em constante redefinição entre a imagem e suas leituras possíveis, a memórias como modo de acesso a um passado cuja arqueologia implica uma mudança do presente e do futuro, e das estrutura sociais como ideias (p.2-4), convenções passiveis de serem continuamente alteradas por via deses actos de memória.

[2] Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, Relógio d’Agua, Lisboa, 2000, p. 357

[3]Bruce Bégout, La découverte du quotidien, Allia, Paris, 2010, p.110

[4] Trata-se da plasticidade que fala Bárbara Formis no seu Esthétique de la vie ordinaire, onde expõe como a arte contemporânea recorre a várias estratégias, por via do gesto: indiscernibilidade, estética do quotidiano vs estética dos gestos comuns, impresentação e menoridade, para revelar a qualidade estética do gesto enquanto comum tanto à arte como à vida, afirmando a convencionalidade ( sentido construído) de ambas, em seu arifício. p. 26 e 27.

[5] Annette Khun, Op. Cit, p. 19.

[6] Gilles Deleuze , Félix Guattari, Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio e Alvim, Lisboa, 2007, seguimos de perto a formulação destes conceitos no capitulo 3, pp. 65-106.

[7] Bruce Bégout, Op. cit. p. 172

[8] Id.ibid., p.286, 287

[9] Op. cit. nota 1.

[10]Celia Lury, Op. cit,p.148

[11]Id.ibid., p. 86

[12] Roland Bhartes, A Câmara Clara,, Edições 70, Lisboa.

[13] Maria João Baltazar, Olhar Moderno – Fotografia enquanto objecto e memória, ESAD, 2010

[14] Maria João Baltazar, Op.cit, p.127

[15] Charles Sanders Pierce, Collected Papers, vol. II, p. 160.

[16] Georges Didi-Huberman, La rassemblance par contact, Archéologie, Anachronisme et Modernité de l’empreinte, Paris, 2008, p. 55

[17] Id.ibid., p. 28

[18] Id.ibid., p . 42

[19] Walter Benjamin, “ L’oeuvre d’art à l’ére de sa reproductibilité technique” in Oeuvres III, Paris, 2000, p. 75

[20] Georges Didi-Huberman, O que nós vemos, o que nos olha, 2011, p. 117

[21] Didi-Huberman contra-argumenta no La rassemblance par contact, Archéologie, Anachronisme et Modernité de l’empreinte, Paris, 2008, p.80, relativamente a essa distancia. Contra essa oposição conceptual propõe pensar a impressão: as reliquias cristãs, rostos impressos, sudário, Verónica, no modo como colocam a questão da auratização do incide, do vestígio ( vestigium) , da face ( facis) e da graça ( gratia) como enunciados no vocabulário medieval. Nestas, e esta torna-se a base do seu argumento, tudo se trata de uma única aparição de uma lonjura, por mais próximo que essa aparição possa ser: essa característica da aura verifica-se plenamente, em todos os níveis, narrativamente, liturgicamente, iconograficamente – na existência das santas faces cristãs.

 

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